domingo, 24 de outubro de 2010

Ame de Novo

Foste tu outrora um beijo polido
A brisa que sopra, nunca sozinha?
Foste tu o momento vivido
O abraço da colina?

E por que choras, ó radiante
A perda do teu céu
O quebrar do diamante
Se ainda vive o teu mel?

Vives tu agora o rasgar
Das cicatrizes, que suas lágrimas deixaram?
Pois volta então a sonhar
E abrace os que outrora te amaram

És tu agora o beijo da morte
E no andar, o passo da cripta?
O brilho do ouro sem sorte
Que o abraço sem brilho reflita?

Pois ame de novo anjo divino
A voz que canta teu nome na penumbra
Ama teu rosto, teu refino
Mas canta com rastro de tumba

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Fantasmas do Passado

Fantasmas do Passado
Angiuli Copetti de Aguiar
Segunda-feira, 10 de outubro.

Acabei de acordar de meu inferno particular, milhares de lembranças dançavam em minha mente e eu tentava afogâ-las com mais uma garrafa, mas elas flutuavam sobre aquela enchente de álcool e tentavam fugir da minha cabeça da maneira mais dolorosa. O inferno existe, e ele está no fundo de uma garrafa de whiskey .
Eu queria morrer.
A porta então se abriu: não sabia se era um anjo ou um demônio que passava por ela. Outra alucinação do meu passado? Tomei outro copo para ter certeza.
Seu nome era Nikki, filha de refugiados da Mãe Rússia que tentaram mudar de vida na Terra-da-Oportunidade. Parecia pálida e abatida, porém era a femme fatale de cabelos negros como a noite e vestido vermelho, sedutora como o diabo. E eu estava caindo na tentação.
- Você é um detetive, certo? – perguntou diretamente enquanto sentava sobre minha mesa e acendia um cigarro. A fumaça e a bebida faziam tudo parecer um maldito sonho inebriante e sem sentido em que você acha que o mundo vai explodir se você abrir a boca.
- Sim, querida, mas sem nomes, não quero me tornar famoso na Broadway do submundo. Então, qual é o caso? – pedi diretamente, entrando em seu jogo.
As palavras pareceiam se perder naquela atmosfera onírica, uma velha banda de jazz tocava em um bar próximo e sua melodia me transportava para dentro dos hipnotizantes olhos azuis que me encaravam.
Talvez eu já tivesse morrido.
Tranqüilamente, com a leveza de um lenço solto ao vento, ela soprava anéis de fumaça em direção ao nada que se expandiam até enfraquecerem e encontrarem o fim de sua efêmera exisência. Uma lição a ser aprendida. – Minha irmã está desaparecida, nunca nos separamos desde que eramos crianças, mas a gora não a vejo a semanas. Temo que ela tenha morrido, ou... sido assassinada – disse ela.
Uma lágrima deslizou por seu delicado rosto até encontrar seu lábio. Não tinha nada melhor a oferecê-la do que uma velha garrafa de whiskey barato que sem sucesso vinha tentando resolver meus problemas a anos e certamente não resolveria os dela agora, por isso simplesmente balancei a cabeça em sinal de ponderação.
- Sua história é tocante, mas não faço caridades – não poderia negar ajuda àquele anjo perdido, mas não sou nenhum super-herói e nem o aluguel se pagaria sozinho . – Não quero extorquí-la como um carcamano sujo, mas se o trabalho trás riscos costumo zelar pela minha segurança. E segurança custa caro.
- Não há problema, terá tudo o que precisar, contanto que a encontre. Ou encontre seu corpo.
Não conseguia entender o por que de ter sido o escolhido entre essa cidade de mocinhos e bandidos, talvez por que os mocinhos estivessem em falta, talvez por que ela quisesse sigí-lo. Mas não havia tempo para divagações.

Terça-feira, 11 de outubro.

"Há mais mistérios entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia", diria o poeta, mas não havia poesia no que eu fazia, apenas quebrar alguns ossos e conseguir meia-dúzia de informações que não levavam a lugar nenhum. Eu apenas solucionava os mistérios, não havia espaço para filosofia.
A primeira pista concreta que consegui arranquei da boca de um traficante que atuava no bairro, juntamente com um punhado de dentes. Meu senso de dever dizia para entregá-lo aos tiras, mas um peixe pequeno sempre leva aos peixes grandes e informação tem seu preço nas ruas, ignorar alguns delítos era o menor deles.
O traficante me disse que uma mulher, que encaixava com a descrição da irmã de Nikki, Natasha, comprava heroína dele e às vezes aparecia acompanhada de um homem. Era tudo o que sabia, sem nomes ou descrições, seus clientes gostavam de ser anônimos e ele não estava a fim de cooperar, mas era o suficiente, teria de arrancar-lhe os olhos antes de conseguir lhe arrancar mais alguma coisa.
Eu encontrára a pista de migalhas de pão deixada por Natasha mas os pássaros já haviam quase acabado com ela e era difícil seguí-la pela floresta caótica de Nova York. Tentei outros traficantes, mais dentes para a minha coleção e mais inimigos no meu encalço, mas niguém sabia de nada. Voltei ao meu velho amigo que havia me dado a primeira pista para arrancar-lhe os olhos, mas desta vez ele estava acompanhado.
Seus capangas se aproximaram de mim e me perguntaram por que eu era louco o suficiente para voltar ali. Quando o primeiro corpo cai e os outros percebem que sua arma está cheia de bons motivos você começa a conseguir as respostas que procura.
Homem alto, cabelo loiro, olhos escuros, jaqueta de couro, tatuagem de um corvo no braço direito; é impressionante a capacidade de lembrança de um homem com medo da morte. Matar um homem friamente não era meu estilo, mas eu não era nenhum bom samaritano, os tempos eram difíceis, bondade estava fora da minha jurisdição. Soltei-o quando o odor de urina que escorria em sua perna já estava insuportável.
Descobri por que ele tinha a preferência de Natasha: sua heroína era um tipo especial, novo, mais forte e mais viciante. Pobre Nikki, não tinha consciência dos esqueletos que sua irmã escondia em seu armário mais sombrio e profundo. Também descobri o bloco de apartamentos onde ela morava, e, após uma rápida investigação, descobri o número de seu apartamento. Encontrára seu armário.

Quarta-feira, 12 de outubro.

Policiais precisam de mandatos, licensas, autorizações: pilhas e pilhas de burocracia, por isso o sistema não funciona, mas aquele era o meu sistema e eu decidia como ele funcionava.
Arrombar a fechadura fora fácil, difícil era entender o que eu estava enchergando: o corpo de Natasha com sinal de estrangulamente e com várias marcas de facadas se estendia sobre o tapete da sala como um anjo na neve e sangue coagulado lhe contornava quase todo o seu lado esquerdo, como uma cobertura de morango infernal. Lembrei-me de Nikki.
Todas as paredes da sala estavam cobertas com inscrições em sangue de uma mente doentia: “desculpe”, “encontro você no céu”, “não foi minha culpa”, “te amo” e outras lamentações. Não estava tratando com um assassino comum ou um mero ladrão, e sim com uma mente perturbada, outro vírus correndo livre nas veias daquela cidade podre, outro número nas estatísticas. Mas estava tudo bem, eram os número que moviam Nova York.
Procurei nos outros cômodos: seringas, agulhas e alguns pequenos sacos de heroína, nenhum sinal da arma do crime, apenas notícias velhas. De repente algo chamou minha atenção: uma jaqueta de couro estava jogada sobre a cama de Natasha, seu companheiro misterioso estivera lá, esta era a migalha de pão que eu procurava.
Desci para rua e liguei para a polícia. Eles me conheciam, dei meu depoimento quando eles chegaram e contei o que sabia. Eles fariam testes com o material que encontrassem e eu logo teria mais peças para o meu quebra-cabeça. Logo depois liguei para Nikki e pedi para encontrá-la em meu escritório, assassinato era delicado demais para ser tratado por telefone.
Ela explodiu em lágrimas e soluços quando lhe dei a notícia. Em sua insegurança me abraçou como se o fim do mundo houvesse chegado e ela o negasse e logo começou a me beijar, suave e apaixonadamente, até alcançarmos o zênite da paixão.

Quinta-feira, 13 de outubro.

Acordei no outro dia na cama de Nikki. Eu não deveria me envolver com clientes mas fui pego na armadilha do diabo, havia algo naquele anjo sedutor que me impedia de pensar, apenas agir instintivamente. Talvez fosse seu ar misterioso, um passado escondido, ou seu olhar cativante, sua insegurança; eu não sabia, e isso me preocupava.
Deixei-a dormindo e fui para as ruas fazer meu trabalho. Liguei para a delegacia e falei com Dale Wells, um antigo amigo meu, ele poderia me informar a respeito dos exames das evidências. A primeira novidade me atingiu como um gancho de direita no rosto: uma das agulhas havia sido usada pela irmã de Natasha, Nikki. Ela certamente sabia mais do que aparentava e não quis me contar, a pergunta era por que. A segunda foi uma pista mais concreta: no bolso da jaqueta havia um cartão de visita do Horne`s, um prostíbulo imundo no canto mais afastado da cidade, e era para lá que iria.
Horne`s, o lugar mais sujo de Nova York que você pode entrar e sair com vida, o mais próximo que você chegaria da mistura de um cabaré dos anos 30 com uma sarjeta e licores vencidos. O Horne`s era como uma garrafa de whiskey ruim: seu melhor amigo quando não há mais nenhuma outra opção.
Sentei no balcão e pedi uma bebida qualquer, não fazia diferença, o que me entregassem seria tão intragável quanto óleo de motor. Ironicamente me entregaram um copo de whiskey.
Pedi ao dono do estabelecimento se havia visto alguém que se encaixava na descrição do amante de Natasha e ele me apontou para um homem sentado a algumas mesas de mim conversando com uma prostituta daquele parque-de-diversões de mafiosos, disse também que seu nome era Matthew. Dei outro gole no meu whiskey e descobri que estava tão bom que conseguia bebê-lo. Tudo estava se ocorrendo estranhamente, e isso me preocupava.
Levantei-me e fui em direção ao meu alvo com minha arma preparada sob o sobre-tudo, pedi para que a prostituta se retirá-se e que ele me acompanha-se se não o mataria ali mesmo, então Matthew tentou correr porém mudou de idéia ao perceber que não era uma simples ameaça e que ninguém ali era um santo para vir em seu socorro.
Levei-o sob protesto até o beco ao lado do Horne`s e lhe acertei um soco no estômago, um pequeno memorando de como eu conduzia meu trabalho, e quando já havia se acalmado comecei o interrogatório.
Ele me disse que conhecera Natasha no Horne`s, que ela era uma prostituta viciada em heroína e que ele requisitava seus serviços com freqüencia em troca de um pouco da droga. Me disse também que a última vez que a encontrára que ela estava tão drogada que ele preferiu ir embora, mas acabou esquecendo seu casaco em sua casa. Ele ficou surpreso quando contei que Natasha estava morta e negou todas as acusações de assassinato.
Levei-o para a delegacia sob a acusação de assassinato mas em meu interior eu sabia que ele estava falando a verdade, aquilo não era serviço de algum cliente drogado insatisfeito, era obra de uma mente mais misterosa. Esse último pensamente me congelou a alma, eu sabia a resposta e, por mais que quisesse negá-la, havia algo em meu interior que me perturbava e eu sabia o que era. Voltei para meu escritório e passei a noite em claro imerso em meus pensamentos e em uma garrafa de whiskey.

Sexta-feira, 14 de outubro.

Ao amanhecer eu sabia a resposta. Os raios de sol penetravam pela janela como um prelúdio da verdade aterradora que constatei. Liguei para Nikki para que viesse ao meu escritório e então lhe revelá-se a identidade do assassino.
Dez minutos depois ela chegou. Usava o mesmo vestido vermelho que da primeira vez que veio me procurar, parecia o mesmo sonho, mas agora se tornara um pesadelo.
- Quem! Quem é o assassino – ela me implorava.
Fui direto. – Você.
Nikki chorava como uma criança perdida assim que as memórias daquela noite trágica emergiam naquele mar de sentimentos e os fantasmas que a assombravam voltaram à vida. Ela me contou o que ocorreu.
Ela havia ido visitar sua irmã em seu apartamento àquela noite e a encontrára drogada deitada no tapete da sala falando coisas sem sentido. Nikki correu para ajudá-la mas Natasha a repeliu e começou a contá-la a respeito do prostíbulo e das drogas, de tudo o que ela escondia de sua querida irmã, um relato completo, como a queda das cortinas de uma peça trágica em seu ápice imundo.
Todo aquele sentimento de repugnância e repulsa por sua irmã e todo o conflito com a imagem com que Natasha vinha mascarando por tanto tempo eclodiu como um misto de ódio e tristeza, e assim Nikki estrangulou Natasha na busca de recuperar sua antiga e inocente irmã, e, após perceber o crime que havia cometido, injetou-se a heroína que sua irmã estava usando. Então, em um assesso de loucura sob o efeito da droga, apunhalou-a várias vezes com uma faca e em seguida escreveu aquelas mensagens com sangue na parede. Saiu, então do apartamente e vagou por algumas quadras até cair inconsciente em algum beco, acordando no dia seguinte sem nenhuma recordação da noite anterior. Talvez o choque traumático a havia feito se esquecer do incidente, ou talvez o diabo queria lhe pregar uma peça, mas não importava agora, o crime estava resolvido e logo a polícia chegaria para levá-la
Quando ela estava saindo algemada pela porta me deu um último beijo, rápido, porém sincero e apaixonado, e então saiu sem olhar para trás. Fiquei olhando pela janela enquanto a viatura partia, e, quando já havia sumido no horizonte, abri outra garrafa de whiskey. Coincidentemente, me peguei filosofando sobre a vida e a morte.