sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Monólogo Último do Navegante

Não cruzarei o istmo, nem aquém
Farei meu sacrifício. A dor do mar
Convulso aflige os débeis braços que
Me pesam, e que invejam o albatroz
Sulcando o ínvio azul. Não, nem o vórtice,
O escolho e o pélago profundo temo,
E a morte que o oceano urde em seus
Abismos: o erodir eterno e frio
Da areia em minha carne; o julgamento
Vazio do olhar de peixes a meus ossos;
O céu no escárnio à luz de escamas. Não.
Assombra-me o momento do abandono:
A quilha em escombros; o sextante baço;
Silêncio a inflar minha mortalha ao mastro.
Eu sei, somente este timão em lascas
Aplacará a tormenta; apenas mãos
Atadas apaziguam os deuses. Ó,
Ulisses, quando avante à tua Ítaca
Sonhada te lançaste, contra a fúria
E ardil infesto do abissal Poseidon,
Mais livre foste que jamais será
A humanidade, e mais divino o mar
Em teu caminho que o cruel Elísio.
O céu é breve no horizonte, o azul,
Infindo, e o odor de terra me inebria.
Somente sou minha memória agora,
Agora em que o horizonte e o mastro marcam
O instante da ablução - em que o infinito
Se encarna na dissolução. Acaso
Entenderia a água o intento
Humano de acossar aquela linha
Evanescente para sempre além
De seu desejo? Não. Eu tenho por
Irmãs as nuvens que se impelem rumo
Ao seio do absoluto. Mas, que diz
O mar? Que tudo acaba. Esse instante
Craveja em minha carne; o derradeiro
Momento, o último. Que há além?
Que há aquém? Somente o instante imóvel,
Irresoluto; e nele, eu, soluto.
O ar adensa. Aqui embaterei a hora
Em que a procela engolfa a luz final
E o raio inscreve contra o turbilhão
Das trevas meu destino amaro e a chuva
Encobre o espaço amplo que me resta,
Trazendo vivo o uno inevitável.
Não há de me encontrar a aurora, nem
Me agraciará o sol de um novo dia,
Porém, perante a imensidão do Todo,
Abarcarei o Nada inabalado.