quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Limiar

Limiar

Por imemoráveis anos tenho estado nesta mansão lúgubre. Nesta cela. Neste leito. Esperando por minha derradeira hora, me escondendo de criaturas que habitam esta casa enquanto minha sanidade se consome vagarosamente, como o óleo que mantém a tímida chama da lamparina à minha frente, que em vão tenta se opor à escuridão que se acerca à minha volta.

Reclino-me sobre minha velha escrivaninha, antes vigorosa e resistente, agora consumida por insetos e desgastada pelo tempo, esquecida em um canto escuro e afastado. Após tanto tempo evitando-a, reclino-me novamente sobre ela.

Tomo uma folha qualquer, roída por traças, procurando encontrar descanso aos meus pensamentos. Embebedo a fina ponta de minha pena no tinteiro, o líquido escorre delicadamente como meu sangue em minhas veias: negro e relutante.

Escrevo.

De minha inocente infância à minha sórdida velhice, preencho cada espaço em branco com todos os detalhes que minha mente me concede a permissão de lembrar, tornando negra aquela folha outrora alva com meu sangue amargo, aliviando meu espírito daquelas lembranças malditas.

Escrevo.

Escrevo até que o manuscrito se torne apenas um borrão indecifrável, tornando-o o novo receptáculo das memórias que minha mente já repudia.
Guardo minhas lembranças em uma gaveta e deixo-as ali, para que quando aquela casa retorne ao pó, que elas se tornem pó junto a ela. Que retornem ao nada e ao oblívio, ao vazio e ao olvido.
Tomo a lamparina em minhas mãos, coloco-me em pé com dificuldade e me arrasto até a porta, ouvindo o longínquo e próximo murmúrio agonizante de criaturas abomináveis e inomináveis.

Familiares.

Cada passo dado, vagaroso e cuidadoso, evitando que algo indesejável se acorde de seu profundo sono, se traduz no tenebroso ranger do assoalho. A lamparina que carrego, meu único sinal de esperança e lucidez em meio àquela funesta sombra que me engolfa, derrama seu óleo incandescente sobre o chão, e em meu coração clamo aos céus para que as chamas se alastrem e ponham um fim nesta terrível agonia e que os misericordiosos ventos dispersem os últimos vestígios deste maligno, detestável e desprezível lugar.

Em vão.

Faço meu caminho por corredores, salas, câmaras e antros; eu sei por onde devo seguir, eu sei para onde devo ir. Já estive próximo à saída, porém recusei seu convite, a casa me era mais reconfortante; mas agora que o fim se aproxima, tenho medo do remorso que sinto e remorso do medo que senti.

Logo à frente diviso um vulto pálido e disforme em meio às sombras, se arrastando sem rumo, como uma vaga lembrança que viaja pelos corredores da mente sem encontrar quem lhe convoca, e o dono daquela casa, sem conhecer o motivo da repentina visita, se esconde até que o convidado indesejado se vá, e assim possa retomar seu caminho, ainda que perdido sem o amor da doce Ariadne.

O horror toma minha alma, e o medo insano que incendeia meu espírito se confunde com a dor que sinto ao apagar a lamparina com meus próprios dedos desnudos, fechando-se em torno do pavio ao ponto de lograr sentir o cheiro de minha própria carne queimada.

Apenas alucinações.

(Apenas alucinações?)
Fecho meus olhos como uma criança que em sonhos vãos espera que a escuridão de sua alma lhe proteja da realidade. Ah!, inocência de minha doce infância: inocência que julgo ter carregado por toda minha vida.

Amarga vida.

Em minha própria escuridão sou atormentado por demônios que me atacam incessantemente, me inquirindo, me questionando sobre minhas ações passadas. Não suporto a agonia e abro os olhos novamente. Apenas escuridão e sonhos.

Chronos, pai de deuses e demônios.

Torno a caminhar. Sussurros distantes e indecifráveis me indicam que ultrapassei a algum tempo a fronteira da sanidade e agora caminho pelos verdes campos distorcidos da loucura, onde espero encontrar finalmente uma fonte que me sacie a sede que a travessia do deserto da realidade provocou.

Chego em frente à escada que me conduz abaixo, ao salão principal. Hesito. A idéia de deixar este lugar me agrada e me destrói. Por tanto tempo estive abraçado pelo calor maternal de suas paredes, estive em seu ventre desde seu crepúsculo iluminado.

Lentamente transformado em trevas.

Recuso-me a deixá-la. Mas suas acomodações outrora reconfortantes agora se mostram aterradoras e sufocantes. Como um animal moribundo em seus últimos espasmos, minha mente se contorce perante o dilema agonizante.

Caminho.

A cada degrau imensurável que minha alma transpõem, meu medo perante a perspectiva de encontrar o Desconhecido para além daquelas portas me faz vacilar e caminhar à sincronia vagarosa do infinito. A chama trêmula de minha lamparina cria sombras bruxuleantes que dançam em um ritmo ensandecido e inconstante sobre o chão de madeira enegrecida. Diviso formas conhecidas que escapam de minha mente e se juntam a outras criaturas em um ritual onírico, reunidas para conjurar o demônio que dorme profundamente por trás da minha consciência a fim de que ele tome controle deste invólucro terreno.

Mas resisto.

Assim que meus pés tocam o terreno antes habitado pelas sombras, que fogem em uma debandada louca perante à chegada da luz que as criou, meu corpo se contorce em convulsões diabólicas e meus sentidos turvam-se ao ponto mútuo em que sanidade e insanidade se interpelam, a confluência entre o divino e o infernal. O último clamor relutante daquela casa.

Torno a caminhar, andando em passos distorcidos, conduzido por uma melodia transcendental. Logo à frente observo os delicados raios de luz que atravessam o vão da porta deste cárcere: minha alma. Luz sublime que preenche meu espírito de uma paz etérea. Liberdade.

Sinto-me fraco. Minhas mãos tremem.

Ato final do destino?

A lamparina cai.

O óleo se esvai.

A chama se apaga.

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