sexta-feira, 31 de agosto de 2012

III

Longínquas lendas ao relento leio,
Ao luar da manhã que se avizinha,
Ao luar desta noite que definha,
Sob o alvo olhar do sonhar alheio.

Sinos que dobram em sinais de enleio
Desdobram rico aroma a cada linha
Mais rico aroma que a vistosa vinha,
De fartos ramos de perfumes cheios.

E o rubro vinho que este fruto traz
(Purpúrea estrela do sonhar terreno)
Não mais que a lua, ao sonhador compraz;

E o elevado soar do santo sino
Eleva um badalar não mais sereno
Que as suaves fragrâncias deste hino.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Distração



Quanto tempo tem um momento
Que se olha e não se para nunca mais?
Quão forte é aquele sentimento
Que te força, discreto, olhar pra trás?

E se o sorriso não surge. Calado
Se o movimento é breve, intocável
Permanece surdo, ou intocado
Permeias-te os olhos, é amável

Roubando qualquer atenção, quente
Correndo lento, suspirando alto, brando
Nada disso se explica, só se sente
Sem certeza se só tonto, ou amando

A mão que percorre o cabelo faz poesia
Cada movimento, em arte imerso
Do olhar singelo, se faz cantoria
Do teu jeito doce, eu fiz um verso

Ondas, tantas ondas se dispersando
Tanto respirar, fulgores ardentes
Tudo breve, logo emancipando
Sempre iguais, igualmente diferentes

A quietude tímida e singela, astral
Que mostras no sorriso fechado
É algo de princípio, algo anormal
Que demonstra carinho, notado

Quão tímidos podem os olhos ser
Se diante deles me posto, cálido
Vagam lentos, calmos, mas a ver
O que pensa deste meu rosto pálido

E os lábios tais, pulsa meu coração
Frenético, mesmo sem tanta certeza
Se real, engano, ou uma linda ilusão
Os traços leves, desta linda princesa

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

II

Poderia eu afogar meu ser
Com o furor do vinho dos sentidos
(Destrua!, adormecer, desconhecidos)
E entre mundos ainda assim viver?

Haveria algum dobrar por saber
Algum licor a mortal não provido
(Destoe!, vagar, clamar não ouvido)
E entre eras jamais, assim, morrer?

Ser, viver, saber, morrer... que haverá
De novo? Talvez partir ao deserto
Distante, a rima, o riso, a partida

Que será? Viverei? Quem saberá?
Morrerei. E quando meu peito aberto
Estiver, saberei: foi minha vida.

À Tumba de Minha Esfinge

Desperto ao ver o turvo céu que cinge
De escura luz e celestial incenso
A oculta tumba do deserto extenso,
A incerta lápide de minha esfinge.

Misterioso espírito que finge!
As puras águas, de um rubor mais denso
Que o sangue sobre o mortuário lenço,
O escárnio de teus tenros lábios tinge.

Desperta, ó Dúvida, e me devora!
Esquífe aberto ao mistério eterno!
Teu sangue saberá à nova aurora,

Teus olhos saberão ao velho inferno!
Ainda escreve ao epitáfio um verso,
E ali vagueio em sua voz imerso.

Falar Com O Silêncio


               Quem morava no sobrado Mundo Novo não sabia dizer o que era pior, o cheiro de ferro, pedra e pó de madeira que pairava no ar, ou o ambiente cadavérico que fazia qualquer um jurar ser o auge da madrugada às 2 da tarde de uma quarta feira.
               Em uma mistura de lúgubre e pálido, a vizinhança sonolenta e sozinha vivia em uma eterna ressaca. Silêncio, o som do trem velho, mais silêncio, algumas tímidas marteladas e mais silêncio. O velho sobrado que modestamente se aconchegava entre os entulhos da vida suburbana, receberia uma visita interessante nesta quarta feira, tão cinza quanto brasas velhas.
               Eva, uma moça de tamanho atrativo, presença marcante, o corpo dos sonhos que qualquer garota rezava a deus que desce de presente, desceu do velho trem e dirigiu-se até o velho sobrado. Tão animada quanto assustada, era a chance de fazer vida nova neste mundo louco e perturbado da cidade grande. Quantas figuras interessantes iria encontrar? Que surpresas esta experiência aguarda? Será essa a grande chance da carreira de modelo decolar? Enchia sua jovem cabecinha de perguntas e mais perguntas, enquanto abria devagar a porta gemente.
               Sentava-se em uma espécie de guarita, um homem que se postava a cochilar, um café frio e a televisão ligada no canal de notícias. O metrô havia quebrado novamente. Entrou tímida e devagar, sentia a fraqueza das tábuas podres e úmidas cedendo sob seus pés.
               -Com licença, senhor.
               -Se quer um quarto, temos o 141. A chave está na porta. Amanhã discutimos seu aluguel. –Respondeu com a voz emudecida pelo sono, quase imperceptível, seguido de um ronco alto que estufou o peito repentinamente.
Como havia dito o homem, ali estava a chave e o quarto aberto. Enquanto tirava-a da fechadura com dificuldade, do apartamento saiu um homem alto, magrelo, cabelo raso e barba curta, olhos penetrantes e de um mistério cadavérico em seus olhos.
-Bom dia, vizinho.
O homem virou-se e desceu as escadas sem responder uma palavra. Cretino mal educado, pensou. Fechou a porta e fez as malas. Era um quarto pequeno, uma cama de solteiro, uma mesinha de cabeceira e um abajur velho, a janela de nada adiantava, pois um muro de tijolos bloqueava qualquer visão exterior.
De noite, não conseguia dormir. Não sabia se pelo desconforto da sua cama, ou pela ansiedade que sentia, e por qualquer motivo não podia parar de pensar no cretino mal educado que a ignorara.
O som dos sapatos no corredor se dirigia até a porta do apartamento em frente, Eva espiou o misterioso homem entrar e se fechar lá dentro. Impaciente com tudo aquilo, colocou seus chinelos, seu roupão e bateu de leve na porta, que quando atendeu foi recebida assim:
-Desculpa incomodar tão tarde, mas ainda estou chateada com sua grosseria de antes. Por que não se prestou a me dizer um oi?
Nada falou, apenas fechou a porta novamente, fria e silenciosamente, deixando Eva de cara parada, mirando o olho mágico do quarto 142.
Os pensamentos ruins em relação ao misterioso homem vieram em rápido tempo, não costumada a ser tratada de tal forma, não tardou a ter seu ódio desperto. Maldito canalha, quem pensa que é pra me ignorar dessa forma?
E assim seguiram os dias. Nada de emprego, vivendo de seu curto dinheiro de emergência e pensando constantemente na náusea que o homem lhe proporcionara, não o via tinha um tempo, até o fatídico dia em que voltava das ruas, onde tentava arranjar um bom emprego, e trombou com o homem no corredor.
-Como é? Não vai pedir desculpas?
Apenas seguiu mudo até seu quarto. Aquilo era demais para a pobre Eva, sempre muito admirada pelos homens a sua volta e de repente desprezada por um qualquer, aquilo havia de mudar, seu orgulho era grande demais para se deixar ferir tão facilmente.
Dirigiu-se até a porta e bateu com força. Outra vez mudo e frio o homem abriu, sem demonstrar nenhuma sensação, boa ou ruim, apenas indiferença. O encarou firme por poucos segundos.
-Quem pensa que é para me tratar dessa forma, estou farta dessa tua arrogância, seu porco cretino! Trate-me como uma dama de respeito!
E de novo, seu nariz encontrou a porta, fechada com a maior demonstração de frieza e indiferença que a moça já havia presenciado. –Mas não me dou por vencida. – Era perto da meia noite, e Eva dirigiu-se até a porta novamente e bateu. Ninguém respondeu. Insistiu por algumas vezes mais sem resposta. Girou o trinco, para sua surpresa a porta se abriu repentinamente, e diante dela o misterioso homem deitava com metade do seu corpo coberto, encarando-a com um leve sorriso.
Eva vestia sua roupa mais sensual, e mexia-se de forma provocante, lutando para cair nos encantos do homem.
-Fica difícil de me ignorar assim, não é?
E para a sua surpresa, o homem outra vez nada disse, apenas seguiu a encará-la, ainda sorrindo, um sorriso tímido e contido. Inconformada, subiu na cama e ficou de joelhos próxima ao homem, agachou-se e apoiou-se em seu peito.
-Eu não entendo, responda! Fale algo, faça algo! – Tanto insistiu sem resposta, com os lábios tremendo e os olhos inquietos, beijou o homem, de forma incisiva e brusca. Este momento ele não ignorou e a beijou também, calmo e relaxante.
A noite corria, e ambos rolavam suados pelas cortinas, horas depois já exaustos, deitaram um ao lado do outro, fitando o teto. O homem puxou um cigarro e começou a brincar com as fumaças que produzia.
-Eu não entendo, por que você insiste em nunca dizer nada? Qual o motivo disso? –Falava calma e carinhosa desta vez, interessada numa possível resposta.
O silêncio insistiu, e as perguntas também. –Qual o seu nome? Por que vive aqui? O que faz da vida? –Nada, sem respostas. Quarto vazio de assuntos, palavras e olhares.
A voz da moça ficou chorosa, e tornava a implorar a resposta do homem: - por quê você não fala nada? Por favor, me diga.
-Eu prefiro falar com o silêncio.
Parada ficou Eva, surpresa demais por finalmente ter conseguido uma resposta. Mas ainda não entendia o motivo daquilo tudo, e para piorar sua agonia até o fim da noite não ouviu outra resposta, e dormiu encucada e confusa.
No dia seguinte, acordou em uma cama vazia, deduziu que o homem havia ido trabalhar, na cabeceira um bilhete dobrado escrito: Para a musa da pele bronzeada. Dentro dele, nada além de papel em branco, um vazio, uma inexistência.
No dia seguinte, Eva pegou o ônibus de volta a sua cidade natal, ao seu lado um jovem sentou-se e pediu seu nome. Ela sorriu, virou a cara e permaneceu em silêncio.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Cadáver



Cadáver, fresco cadáver
Que pelo chão rasteja
Não vejo maior motivo
Que acima do solo esteja

Triste figura dos campos mortais
Procurando palavras e mel
Preso aos poucos, pó de porão
Nada acima do senhor do céu

Cadáver, fresco cadáver
Lembre-te daquele dia
Quando o sol nasceu
E a poesis ainda sorria

Cadáver, podre cadáver
Onde está teu amor?
Perdido no tempo, ou
Foi vez de morrer no calor?